terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

O descontraído bairro Bellavista

A ânsia de chegar a uma cidade e conhecer os seus pontos turísticos mais famosos é tanta que os roteiros de viagem normalmente são estruturados de forma decrescente. No primeiro dia com certeza está o "essencial", no segundo dia, o essencial número dois, e assim a viagem segue até o último dia, que não apresenta nada muito significativo. Tanto que no final a correria dá espaço a uma relativa calma e os viajantes gastam seu tempo andando a esmo, descobrindo novas ruelas e bistrôs ou voltando aonde mais gostaram - muitas vezes, o mesmo lugar do primeiro dia.

(Ruas do bairro Bellavista. Clima de bairro boêmio ainda pela manhã)

Isso não quer dizer que o início é sempre a melhor parte. Quem viaja sempre espera novidades, e é esse sentimento que deixa as pessoas abertas às surpresas. E as surpresas, como todos sabemos, não têm hora para acontecer. Mas em Santiago a regra prevaleceu. Quando chegamos ao bairro Bellavista sabia que tínhamos começado pelo melhor. Pelas suas casas bonitas, ruas mais charmosas, bares badalados, clima de capital... o conjunto da obra. Se alguém fosse passar só um dia na capital do Chile eu diria: vá ao bairro Bellavista.

A tranquilidade matutina...

Realmente, não há paisagem mais bonita para os olhos do que as ruas de Bellavista. O bairro costumava ser um reduto católico e aristocrático, mas começou a mudar a partir dos anos 1920, quando ganhou construções de diferentes estilos arquitetônicos. As casas que se instalaram ali eram, ao mesmo tempo, modernas e clássicas, chiques e rústicas, imponentes e simples, e por serem assim começaram a chamar a atenção principalmente de artistas e pensadores, que deram ao local um toque de boemia.

(O famoso Como Água para Chocolate, inspirado no livro da mexicana Laura Esquivel e também na sua trama: no cardápio, pratos que aguçam os desejos)

Um dos artistas que resolveu criar raízes por ali foi nada mais nada menos que Pablo Neruda, um dos mais importantes poetas do mundo e prêmio Nobel de Literatura em 1971. Foi no Bellavista que Neruda construiu a sua terceira casa, um dos pontos mais importantes do bairro e quiça, de toda capital.


O ingresso que custa 2.500 pesos chilenos (algo em torno de 10 reais) dá direito ao visitante a fazer uma visita de 40 minutos acompanhado de um guia turístico. Não hesite. O passeio vale muito a pena. E você vai querer fazê-lo assim que chegar à porta de entrada e ver, lá de baixo, as curiosas formas geométricas da casa. O guia explica que Neruda era um apaixonado por mar e queria dar um aspecto de barco à sua residência. Por isso os tetos são baixíssimos, as paredes brancas e muitos dos quadros e objetos fazem referências ao oceano. A maior marca do seu apreço pelo ambiente marítimo é a sala privada, com uma janela panorâmica semelhante à de uma cabine de comandante com uma paisagem estonteante da Cordilheira dos Andes. Hoje, infelizmente, os lotes vagos, prédios e a poluição local não se parecem em nada com o que ele enxergava poucas décadas atrás.

(A "cabine do comandante" com sua visão panorâmico)

Outro espaço igualmente curioso é a sala que fica no pátio, cheia de objetos gigantes. Se não ouvi mal, a inspiração veio de Temuco, cidade onde Neruda passou sua infância e adolescência. Há muito tempo, quando parte da população não sabia ler ou escrever, as lojas não colocavam letreiros nas suas portas, mas objetos gigantes que simbolizavam os seus produtos, como sapatos ou relógios. O último cômodo a ser visitado, e alvo de olhares curiosos por parte de todos os presentes, foi a biblioteca. Ali está a sua medalha do Nobel e fotos com diversas celebridades, inclusive Vinícius de Moraes e Jorge Amado, amigos íntimos.

(Infelizmente não é possível tirar fotos de dentro da casa. Mas os pátios com parreiras que tampam o sol já dão uma ideia do local)

Mesmo com tantos objetos e palavras, o visitante sai dali com apenas um nome na cabeça: Matilde Urrutia. Neruda a conheceu durante seu exílio na Itália, quando ainda era casado. Mas Matilde foi uma daquelas paixões arrebatadores. Foi para manter relações secretas com sua amada que ele ordenou a construção da casa ainda em 1953. Quando sua mulher morreu, o poeta se mudou para a nova casa em Santiago nomeada de La Chascona, palavra que só existe no espanhol chileno e quer dizer algo como "descabelada" ou "cabelos eriçados", em homenagem a Matilde. Durante a visita o guia conta histórias sobre o casal e mostra objetos e poemas dedicados a ela. O romance entre eles termina em 1973, dias depois do golpe de estado que colocou Augusto Pinochet no poder, Neruda morre. Matilde se encarrega então de cuidar de todo o patrimônio do amado até sua morte, em 1985, na casa aonde viveram.

Depois de visitar a La Chascona fomos ver a paisagem que tinha sido um dos motivos pelo qual Pablo Neruda instalara sua casa no Bellavista. Para isso fomos  entrada do funicular que dá acesso ao Cerro San Cristóbal, um dos morros que integra o conjuntos de montanhas da cidade.

(Passageiros a bordo...)

A vista que se tem de Santiago do alto do cerro San Cristóbal é diferente é a mais bonita. Isso porque além de o morro ter 880 metros de altura ele proporciona um olhar panorâmico. É possível ver a capital chilena lá embaixo de praticamente todos os seus ângulos. Confesso que fiquei um pouco decepcionada pois em fotos de amigos me lembro de ver uma cidade rodeada pelos colossais picos da Cordilheira dos Andes e, por causa do nevoeiro de fumaça causado pela poluição do local, o chamado smog, não vi nem metade.

(A melhor foto dos Andes que consegui naquele dia não traz nem a metade da montanha)

Ainda assim é uma paisagem linda. O próprio cerro é um lugar legal para ir e fazer um piquenique ou mesmo para relaxar. A estrutura local conta com várias lanchonetes e - claro - as típicas lojinhas de souvenirs para os turistas gastarem seu dinheiro. A montanha se transforma em caminho de peregrinação por abrigar o Santuário de Imaculada Conceição desde 1908. Além da igreja, no alto da montanha há uma estátua enorme da santa, de braços abertos em adoração e olhar fixo no céu.

... E o agito noturno 

Bellavista são duas. Se de manhã os olhos se fixam nas cores e traçados de suas casas, a noite o que encanta é o clima boêmio e descontraído. Pela manhã o passeio é contemplativo. A noite a visita é para aproveitar. Aproveitar e se integrar.

(Fim de tarde nos barzinhos do bairro Bellavista)

Se você estiver a fim de se entrosar esse é o bairro perfeito. Há gente passeando nas ruas, entrando nos bazares e, principalmente, sentada nas mesas das lanchonetes, bistrôs e restaurantes a todo momento. O movimento começa na hora do almoço, mas aumenta mesmo no fim da tarde e não para até o amanhecer.


É importante lembrar que no verão de Santiago o sol se põe por volta das 21h30 então não é preciso esperar o céu ficar escuro para sair de casa. Principalmente se a saída for para jantar: alguns restaurantes são muito concorridos e só se consegue uma mesa chegando muito cedo ou fazendo reserva. Se a ideia é cair na balada, não há nenhuma regra de etiqueta que um bom brasileiro não saiba.


(Restobar Ky é considerado o bar mais cool da cidade. Fique atento ao endereço pois a casa é escondida e não há placas na porta. O local tem salões de todos os jeitos: dos minimalistas aos mais exóticos. As pessoas se senta em cadeiras, almofadas ou mesmo no chão. O importante é aproveitar a noite. Foto tirada desse link)

Saudosismo

Alguns dizem que o bairro Bellavista não é mais o de antigamente. Por causa das suas características singulares e do seu apelo turístico e comercial, ele tem se voltado mais para os visitantes do que para os habitantes da cidade. Um lugar que poderia representar essa afirmativa é o Pátio Bellavista. Aberto em 2006 em um antigo galpão industrial, o espaço que oferece uma série de lojas e restaurantes bastante chiques.

(Em épocas especiais há apresentações musicais)

Alguns acreditam que o galpão poderia ser transformado em outra coisa, as vezes um centro cultural. Outros acreditam que o local só serve aos ricos e endinheirados, como muitos dos bares e restaurantes da região que antigamente recebia todo tipo de gente. A questão permanece no ar, mas a bem verdade é que chilenos e estrangeiros frequentam as casas de paredes coloridas e janelas amplas que hoje se transformaram em bares e boates descolados, lojas vintages, teatros alternativos e centros culturais.

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