sexta-feira, 4 de março de 2011

Entre a obediência francesa e o jeitinho brasileiro

"Estou triste pelos franceses terem fama de serem arrogantes e sem educação. Sinceramente, os franceses são muito mais educados do que as pessoas dizem". Escrevi isso no post Gentileza Francesa, em setembro, quatro dias depois de ter chegado em Paris. Na hora, fiquei com receio de ter feito um julgamento errado. Afinal, a fama de serem "arrogantes" ultrapassa gerações.

O tempo me fez ver algumas coisas. Em geral, eles são sim, muito educados e gentis. Peça uma informação e eles farão de tudo para lhe ajudar. Entre em uma fila e eles vão respeitar essa ordem como se fosse um ensinamento sagrado. Passe na rua de short tranquilamente que nenhum homem vai soltar um "princesa", "linda" ou coisa parecida (um péssimo hábito dos homens brasileiros, por sinal).

O respeito às regras e às ordens é a glória e o fracasso dos franceses. Por obediência, eles respeitam filas, pagamentos, pessoas. E é por essa mesma obediência que eles podem acabar maltratando alguém.

(Nosso jeitinho brasileiro já foi exportado e até virou piada - para o bem e para o mal. Foto tirada desse site)

Quando estava fazendo o meu visto de estudante e tinha esquecido um mísero xerox de documento a moça do caixa mudou seu comportamento comigo, falou que não podia fazer nada até eu trazer aquela coisa inútil e me mandou repetir todo o porcesso (inclusive a fila) no dia seguinte. Dez minutos antes de as lojas fecharem ninguém entrava. E se você ainda estivesse escolhendo o produto eles diziam: "vamos fechar" e te expulsavam. Em um momento de greve de trens, uma amiga ia perder o voo em outra cidade e a pergunta que recebeu da moça quando perguntou quais alternativas ela tinha foi "isso não é um problema meu".

Em todos os casos eles estão certos. Sim. Por que não? E por que isso irrita, afinal? Porque isso mostra como o francês não se importa muito com as necessidades do outro. Se o meu horário de trabalho acabou, acabou e ponto. Se ele está em coma alcóolico e vai morrer no meio da rua não vai ser eu que vou levá-lo pro hospital e correr o risco de amanhecer com o carro cheio de vômito. Quem mandou beber?

Já nós, temos algo que é péssimo: o jeitinho brasileiro. Ele é responsável pelo esquecimento voluntário de certas regras e pela criação aleatória de uma série de benefícios que não deveriam ser fornecidos, pois ele acaba atendendo àquele que pediu com mais "jeitinho" ou àquela que tem mais influência. É a tática do malandro.

Mas como tudo, isso também é relativo. O jeitinho não funciona ns França. Mesmo. E olha que eu já tentei várias vezes. E por que ele funciona no Brasil? Porque nos importamos, nos comovemos. Se vemos alguém pior do que nós em uma fila de hospital não perguntamos para as outras pessoas que estão depois: deixamos o pobre coitado passar. Se um pai desesperado chegou na loja 10 minutos depois do horário de fechar e pede caridosamente para comprar um presente pra filha que faz aniversário, o deixamos entrar.

Se a obediência é a glória e o fracasso dos franceses, o jeitinho é o fracasso e a glória dos brasileiros. Talvez, por isso, temos a fama que temos, de amáveis e simpáticos. E também de corruptos.

Acima da média

Mas uma coisa é fato: na região de Auvergne as pessoas são ainda mais gentis. Voltei com o hábito de dizer "bom dia" e "como vai" para qualquer pessoa: na padaria, no supermercado e até no meio trânsito, sem tempo de conversar por causa do sinal, só para iniciar a conversa e pedir uma informação. No fim era a mesma coisa: "obrigada" e "tenha um bom dia", a tradução do tão repetido "bonne journée".



(Uma vida calma e tranquila... mesmo no meio da tarde de um dia de trabalho como todos os outros)

A generalização é nacional. Todos na França concordam que Auvergne é a região mais simpática e menos estressada. O contrário de Paris, onde todos são taxados de apressados e sem paciência. Realmente, você se sente um "membro da comunidade" quando está em Clermont. Quando começava o dia com aquela preguiça e precisava de um ânimo extra para ir para a aula, o cara da recepção, a moça da lanchonete e até as pessoas que eu nunca vi na vida que entravam comigo no elevador diziam bom dia com aquele sorriso. Depois dessa, a gente até fica um pouco animado.

O próprio governo da região criou uma campanha baseada nisso. Com o título "L'Auvergne ça change un vie" (ou Auvergne, isso muda uma vida) os vídeos (que podem ser vistos nesse site)trazem um parisiense que acabou de se mudar pra região e ainda não se acostumou. Em um dos curtas ele acha estranho todos se cumprimentarem nas ruas. Em outro, ele conversa com a câmera assustado, pois tinha acabado de sair de um banco, ganhado um cafezinho, conversado calmamente e resolvido todos os seus problemas. Uma realidade fora de seu alcance... tudo feito com muito humor, claro!

4 comentários:

  1. Expor, tanto o lado bom, quanto o ruim, de características evidentes dos habitantes desses países, é bastante delicado.E você conseguiu abordar de um modo bem sutil.
    Parabéns pela matéria!

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  2. Realmente, vivendo aqui em Grenoble, pude perceber esse normatismo típico dos franceses, mas também já os vi sendo antipáticos sem razão alguma, como também já vi franceses darem um "jeitinho". Mas, generalizando, o dia-a-dia corre bem do jeito que descreveste, mesmo.
    Sobre as disparidades entre as diferentes regiões da França, assisti a um filme esses dias que abordava esse aspecto. É uma comédia francesa que se chama "Chez les ch'tis" (em português, "A riviera não é aqui"), sobre um sulista que vai para o norte. Recomendo (eu só consegui assistir dublado em português, mas se vc encontrar em francês, tenho certeza que será uma experiência bem mais agradável).
    Gostei muito do seu blog, espere a minha visita mais vezes ;)

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  3. Obrigada pelos comentários!

    Cassio: vou procurar o filme por aqui! Valeu pela dica! Também gostei bastante do seu blog! Depois temos que trocar algumas ideias sobre o mundo ser uma "ervilha" =]

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  4. Adorei seu blog, comecei pelos posts sobre o Atacama (quero muito passar uns dias por lá), e depois fui divagando com os outros posts sobre Europa, etc. Gostei especialmente de um em que você fala que não gostou tanto assim do lugar (agora não me lembro qual foi), e onde você fala que quem se dispoe a escrever suas impressoes sobre uma viagem deve também falar sobre o que não gostou.
    Por coincidencia tenho um blog chamado Impressoes de Viagens (http://impressoes-de-viagens.blogspot.com.br/ )que comecei a fazer exatamente para falar sobre uma viagem à Patagônia argentina (que foi maravilhosa, mas tinha algumas pegadinhas). A idéia era orientar melhor os turistas q quisessem ir pra lá.

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