quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Nostalgia à bolognesa

Eu costumo dizer que a partir do momento em que resolvemos fazer um intercâmbio, viajar para fora, para estudar ou trabalhar, estamos fadados a sentir saudade. E ouso dizer que isso é pra sempre. O bom é que, pelo menos pra mim, essa saudade não é daquelas doídas, costuma vir como uma cosquinha gostosa e me deixar com um sorriso bobo no rosto.

(Ruela do Mercado Velho em Bologa. Só saudades... Foto de Juli Borsa - Mochila da Juli)

Escrevendo sobre Bologna, procurando fotos para ilustrar os posts, tantas lembranças vieram a minha cabeça. Pessoas, lugares, conversas, comidas, festas, sensações. Acho que esse sentimento independe do local para o qual se foi, mas tenho certeza que cada lugar deixa na gente marcas, experiências e saudades bem específicas.

De Bologna guardo coisas que só Bologna poderia ter me oferecido. Não que eu não queira morar em outras cidades por uma temporada ou que eu ache que não existam outros lugares maravilhosamente bons pelo mundo. É só porque, pra mim, morar em Bologna foi especial (talvez também por ter sido a primeira vez em que morei fora de casa).

(Um pisolino depois do almoço não faz mal pra ninguém. Foto tirada desse link)

Levo não só as paisagens e sabores, mas também a tranquilidade e a calma com que as pessoas andavam e viviam. Não sei dizer se é coisa de italiano, mas pelo menos em Bologna as pessoas pareciam não ter pressa. Desde os passos lentos nos passeios largos até as 3 horas de almoço, que permitiam uma boa siesta ou pisolino (em português, cochilo), a qualquer cidadão de bem. No horário de almoço fecha-se tudo: bancos, lojas, até farmácias. Acho que só os restaurantes não se incluíam nessa. E foi bom perceber que ninguém morre com isso e que tem coisas sim que podem ser deixadas para depois, sem nenhum dano.

Na Europa os próprios italianos dizem ter fama de preguiçosos, mas não acho que seja bem assim. O que sei é que a mim fez bem viver em marcha mais lenta, com tempo para cafés e sorvetes no final da tarde (que não são luxos apenas de turistas e intercambistas), tempo para admirar os já falados pórticos e até tempo para o doce “bel far niente”. Eu adoro essa expressão italiana e, como eles, acho mesmo que existe beleza no ócio.

(A mãozinha balançante... tão necessária quanto a própria língua. Foto tirada desse link)

Além de amar a sonoridade da língua italiana, tem diversas expressões nesse idioma que eu adoro, a maioria pela criatividade. As que eu mais gosto, por serem super divertidas, são as utilizadas para desejar sorte a alguém que enfrenta uma circunstância difícil: uma prova, um jogo disputado, uma entrevista de emprego. Nesses momentos os italianos costumam dizer In bocca al lupo!, o que significa “Na boca do lobo!”. A pessoa que recebe os auguros de sorte responde, então, Crepi! É como se a pessoa estivesse dizendo algo do tipo “Matarei o lobo” ou “O lobo já era”. Veja bem a situação: você está na boca do lobo e ainda assim consegue matá-lo. Isso, de fato, só pode ser muita sorte. Usando essa mesma lógica, porém de forma um pouco menos delicada, existe também a expressão In culo alla balena! ou “No cú da baleia!”. E se você está lá e sobrevive, é mesmo um cara de sorte.

Também adoro a palavra ubriaco, que significa bêbado. Quando está no aumentativo então, fica mais legal ainda: ubriacone. Aliás, o aumentativo e o diminutivo em italiano são uma delícia de dizer: one (ão) como em bacione (beijão) e etta (inha) como em casetta (casinha). Existem várias outras palavras que eu sinto grande prazer em pronunciar: zucchero (açúcar), cucchiaio (colher), coniglio (coelho) e marciapiede (calçada) são algumas delas. Não me canso de me apaixonar pelo idioma italiano. Antes de começar a aprendê-lo jamais pensei que estudar línguas pudesse ser tão gostoso. Todo início de mês uma das italianas que morava comigo pegava um calendário que tínhamos na cozinha, com fotos de frutas, verduras e legumes, e fazia uma arguição comigo e com a nossa coinquilina francesa para ver se sabíamos os nomes dos alimentos, e até isso era legal.

(Frisbees pela madrugada)

De Bologna sinto ainda saudade do corredor da casa onde morei, único, enorme, quase sem fim. Era um apartamento com nove quartos distribuídos por um longo corredor. E o mais engraçado: o patrono da casa (como se diz proprietário por lá), que pra mim não batia muito bem das ideias, não alugava todos e deixava cinco dos quartos trancafiados. Lembro do trenzinho que fizemos no corredor durante uma festa. Jogávamos até frisbee ali, como se fosse um grande parque. Recordo-me ainda, porém sem tanta saudade, da preguiça que tinha de ir ao banheiro quando acordava no meio da noite. Como já disse, o corredor era infinitamente longo e o banheiro, lá no final, bastante longe do meu quarto.

Da casa, guardo na memória também a cozinha, com quatro geladeiras e dois fogões - afinal, nos tempos áureos, com os nove quartos ocupados, onze mulheres chegaram a morar lá ao mesmo tempo. Acho que a cozinha era o lugar onde mais ficávamos. Fazíamos almoços e jantares coletivos, onde cada uma contribuía com o que tinha na geladeira ou no armário e macarrões maravilhosos surgiam.

(Violões e cantoria. Foto tirada desse link)

Ainda guardo o gostinho bom de falar que era brasileira. Não sei se é assim com todo mundo que vai pra fora, mas não me recordo de uma vez em que disse vir do Brasil e a pessoa não abriu um sorriso ou elogiou a alegria e a beleza da nossa gente. Conheci sim, e infelizmente, pessoas que achavam que a capital do Brasil era Buenos Aires, mas isso é recompensado por outras tantas pessoas que realmente se interessam pelo nosso país, nossa cultura, comida e nossa língua.

Sinto falta também do ar musical de Bologna. Deixava o dia mais leve trombar com artistas de rua nas esquinas, entoando canções nessa língua que já é melodia. Domingo na Piazza Maggiore vários deles se reuniam, fazendo de mágica à acrobacia, além de música, é claro.

(A Europa e sua antiga relação com os artistas de rua)

Uma das maiores saudades que sinto da vida em Bologna são das tardes e noites passadas nas praças e parques. Acho que isso não é algo específico da cidade, é coisa de europeu (e das boas). Admiro como o espaço público ali é de fato público, como as pessoas o utilizam de verdade. No verão, quando o calor em Bologna é absurdo, as praças e parques ficam lotados. De dia era parque, pic nic, sol, violão, baralho, bola e, às vezes, cerveja. À noite sentávamos nas praças, ao pé de suntuosas igrejas, e era mais violão, mais cerveja e muito, muito papo. O melhor é que no verão a noite ainda é dia. O sol dura até umas 20h30, o que faz a gente perder a noção do tempo de um jeito delicioso e achar que é sempre mais cedo do que realmente é. Tinham ainda as festas na rua, em meio às belas construções, e aquelas que ocupavam até os prédios da universidade.

(As praças quando a noite se fazia noite, por volta das 21h30 ou 22h)

De Bologna só guardo gostosas lembranças e as doçuras de um intercâmbio, que para mim é um parênteses na vida, um parênteses bem recheado de coisas boas e novas experiências. Bologna foi minha segunda casa e acho que será sempre essa a sensação que terei ao visitá-la. É uma delícia saber que não temos apenas um lugar no mundo.

Se quer saber mais sobre as experiências da saudosa Júnea Casagrande em Bologna, entre nesse, nesse e nesse link.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Comida italiana: um farto prazer

A comida na Itália, como era esperado, é um caso a parte. Come-se muito e muito bem. Lembro da primeira vez que pedi pizza com as minhas coinquilinas (nome dado as pessoas que dividem casa com você). Eu, inocente, esperava uma pizza a ser dividida, quando chegam pizzas individuais de seis pedaços. Sim, seis pedaços! Lá é normal comer uma pizza dessas sozinho, de uma única vez. Bem normal. Eu assustei! Só conhecia a pizza brotinho, que por lá nem existe. Da primeira vez, minha pizza rendeu três refeições. Em pouco tempo, já era craque em comê-la por inteiro de uma só vez. Não foi à toa que os quilos adquiridos prazerosamente por lá custaram muito a sair de mim.

(Itália + comida = pizza. E uma grande por pessoa. Foto tirada desse link)

Pizza lá salva a vida dos estudantes. É super barata e tem em toda esquina. Serve de almoço, jantar e lanche. Além da diferença na massa, a gente vê a diferença nos sabores. A marguerita italiana não tem manjericão, o que, pra mim, a deixa muito mais gostosa. Frango com catupiry eu nunca ouvi falar - o catupiry não se difundiu por aquelas bandas, ou então não tem muitos amigos. Já a nossa portuguesa é quase uma ofensa para os italianos. Acho que nada na Itália tem tantos ingredientes assim. Normalmente, bastam no máximo três, e isso vale para os macarrões também. As pizzas italianas contam com a colaboração de uma maravilhosa fartura de mussarela e/ou molho de tomate. Outra coisa com a qual também tive que me acostumar foi a não colocar, em hipótese alguma, catchup na pizza. Da vez em que me atrevi a fazê-lo quase fui expulsa de casa.

(Mangiaaaaare! Foto tirada desse link)

Assim como acontece com a pizza, também não tem como desvincular a Itália do macarrão. Tudo o que sei cozinhar hoje aprendi por lá, e no meu caso isso quer dizer que a única coisa que me arrisco a fazer na cozinha é exatamente o tal do macarrão (melhor dizendo, os tais macarrões), que em terras italianas é conhecido como pasta. É meio incompreensível como pratos relativamente simples de serem feitos, até por uma completa leiga, podem ser tão gostosos. Eu atribuo muito desse sucesso aos temperos utilizados pelos italianos, a qualidade dos produtos utilizados nas massas e, é claro, ao fogo baixo.

(Macarrão a bolonhesa, na língua "brasileira". Irresistível de qualquer ângulo. Fotos tiradas desse e desse link)

Na minha temporada em Bologna aprendi a fazer quatro macarrões: dois deles só com atum e creme de leite (nunca achei que juntos eles pudessem ser tão bons), outro com queijo, ovos e bacon, o famoso carbonara, e por último o imprescindível macarrão à bolognesa. Sobre esse último, tenho duas coisas importantes a dizer. A primeira é que espaguete à bolognesa não existe em Bologna (e é quase uma afronta insistir nisso). Um porque não se come molho a bolognesa com espaguete, e sim com talharim. Lá, cada tipo de molho tem um macarrão específico com o qual é recomendado fazê-lo - claro que no esquema estudante-universitário isso não funciona muito, mas ainda exista uma regrinha. Dois porque o molho a bolognesa se chama ragù.

A segunda revelação é a seguinte: tem cenoura no preparo do ragù! É, cenoura! Pra quem entende mais de culinária pode não ser surpresa, mas pra mim foi uma grande descoberta. Achei, inclusive, meio divertido. E o melhor é que não dá pra vê-la, nem senti-la no prato, mas eles acreditam que a cenoura faz toda a diferença. E se eles dizem, quem sou eu para discordar?

(As pastas italianas e suas variadas formas de nos deliciar. O tortellini é uma delas... Foto tirada desse link)

O clichê “italianos só comem macarrão” não é de todo verdade, mas a pasta aparece pelo menos uma vez por dia. Se não é no almoço, pode saber que tem pasta no jantar. E quando se vê a quantidade de macarrão que eles comem e a freqüência com que o fazem, logo se imagina um país de pessoas inevitavelmente roliças. Mas não é isso que acontece. Os italianos, sobretudo os jovens, não são gordos. Acho que a alimentação deles apesar de farta, é bem balanceada. Se tem pasta no almoço, no jantar é salada, de folhas, legumes ou verdura. Vale até uma bacia de rúcula com um pedacinho de pão.

Outra coisa que não posso deixar de falar aqui é da maravilha do gelato! Pra mim, gelato não é sorvete, é gelato! É uma cremosidade que não dá pra comparar. A vontade que se tem é de viver só de gelato, não importa se é verão ou inverno. E a dica é: em Bologna, vá na La Sorbetteria Castiglione, tida como uma das melhores do mundo. Eu garanto que ela não decepcionará. A Cremeria Sette Chiese também é excelente e bem famosa entre os bologneses. E a sua localização privilegiada, em frente à Basilica di San Stefano, nos permite tomar o gelato em uma linda pracinha cheia de charme.


(A sobremesa que deveria ser prato principal! Fotos tiradas desse e desse link)

Em meio a vários restaurantes deliciosos e super atraentes que existem em Bologna; osterias, trattorias, pizzarias e muito mais; existe um lugar especial que vale a visita: a Osteria Del Sole, um restaurante muito peculiar, inaugurado em 1465. Originalmente, osterias eram locais em que só se vendia vinho, enquanto trattorias eram estabelecimentos “completos”, que serviam bebida e comida. Hoje essa diferenciação praticamente não existe. Em Bologna pelo menos, o único estabelecimento que conheci que preserva essa tradição é exatamente a Osteria Del Sole, daí sua singularidade.

O lugar é bem simples, mas aconchegante, ocupado por grandes mesas coletivas. Por isso, se você não for com uma boa turma, a chance de dividir a mesa com outra galera é grande, o que eu acho ótimo. Só mais uma oportunidade de fazer amigos! O clima é bem italiano e sempre de festa. Muita gente, muito barulho, todo mundo falando junto, alto e gesticulando. E como cada um tem que levar sua própria comida, a coisa se torna um grande e divertido pic nic, só não é ao ar livre. Eu recomendo muito a experiência.

(Osteria del Solle. Mais aconchegante impossível. Foto tirada desse link)

Para acompanhar o vinho que consumir lá, uma ótima pedida é comprar alguns petiscos nas barracas e lojas espalhadas pelas ruelas da região do mercado velho, que é exatamente onde fica a osteria. As barracas de frutas, legumes e verduras colorem as ruas enquanto dividem espaço com lojas que oferecem os mais diversos e tentadores tipos de presuntos, salames, mortadelas, queijos e pães. É incrível a variedade de produtos dessas lojas. E o pior: eles ficam todos expostos em vitrines, nos seduzindo descaradamente.

Existem ainda as lojas que vendem massas frescas, para serem feitas em casa. Os tortellinis vendidos ali são famosos. Essa massa recheada de carnes é uma especialidade bolognesa, que segundo a lenda foi modelada no umbigo da deusa Vênus. O passeio pela região do mercado velho é uma delícia e dá água na boca. Além disso, o clima é de uma pequena e antiga vila, quase como voltar no tempo.

(Fartura na mesa... e antes dela. Foto tirada desse link)

Devo admitir que não frequentei muitos restaurantes em Bologna. Vida de estudante universitário não é fácil em lugar nenhum do mundo. Mas tem um bem famosinho na cidade, com uma comida maravilhosa e um preço camarada. Chama Osteria dell'Orsa. Eu recomendo o tagliatelle al ragù (não dá pra sair de Bologna sem experimentar o verdadeiro, né?), que é uma maravilha. Para acompanhar, uma dica boa para quando se vai a restaurantes na Itália é pedir sempre o vinho da casa. Eles costumam ser muito bons e ter o preço bem mais em conta.

Um esquema legal que rola em Bologna, e em quase toda a Itália, é o do aperitivo. Funciona assim: em certos restaurantes, durante o happy hour, se você comprar uma bebida tem direito de se servir em um buffet de petiscos: pasta fria, pedaços de pizzas, sanduichinhos... Não sei se o programa vale tanto pela comida, mas costuma ser um bom jeito de começar uma noite. Além disso, é uma ótima oportunidade para experimentar o spritz, um drink muito famoso e consumido na Itália, receita típica da região do Veneto.


(É uma bebida gostosa feita com campari - por vezes substituído por aperol, que é mais doce - e vinho branco.Foto tirada desse link)


Ainda guardo os sabores da Itália na memória. E hoje qualquer macarrão ou pizza me trazem certa nostalgia, porque são mais que culinária, são cultura. E uma cultura pela qual tenho enorme apreço. Para mim, em Bologna, a culinária italiana tem seus dias de glória. E se nem o charme e a história, nem os mistérios dessa bela cidade te convenceram, certamente é pelo estômago que Bologna irá te conquistar.

Acha que ainda não sabe o suficiente sobre Bologna? Conheça mais dessa deliciosa cidade nos posts da publicitária Júnea Casagrande, nesse e nesse link

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Sete segredos de Bologna

Quando penso em quem Bologna seria se fosse uma pessoa, na hora me vem à cabeça uma mulher belíssima e charmosa, elegante e decidida, mas também divertida e libertária, além de muito misteriosa.

(O encanto da noturna Bologna, antes das suas ruas encherem de pessoas. Foto tirada desse link)

A beleza está nos seus monumentos e na sua riqueza de detalhes, enquanto a imponência de suas antigas construções traz a elegância. A sua reconhecida importância política ao longo da história não nós deixa esquecer de sua força. E a agitação da cidade, as ruas movimentadas e sempre ocupadas por jovens a deixa com uma certa leveza. Os seus mistérios estão nos pequenos becos, vielas e praças pouco lembradas, com as quais nos deparamos quando nos perdemos - propositalmente ou não - pela cidade. Mas os mistérios estão também nos sete segredos que dão a Bologna um charme a mais.

Nenhuma das minhas visitas escapou desses segredos. Ninguém sabe a veracidade dos fatos, mas eles com certeza deixam o passeio turístico ainda mais interessante e gostoso de ser feito.

- O primeiro envolve a Fontana Del Nettuno, da qual já falei no post anterior. Dizem que seu escultor, Giambologna, pretendia fazer um avantajado órgão genital em Nettuno, mas foi proibido pela Igreja. Para afrontá-la, Giambologna projetou a estátua de forma que de um ângulo específico (alguns falam que este ângulo era bem na saída de um antigo convento) o dedo da mão esquerda de Nettuno estendida parecia ser seu pênis ereto. Alegando que tal estátua constrangia as senhoras da época, a Igreja quis colocar no Nettuno calças de bronze, mas ele nunca as vestiu. A fonte tem ainda outro elemento com forte carga erótica, também criticado: as ninfas que jorram água pelos seios.

(Bem erótico não? Foto tirada desse link)

- O segundo segredo é conhecido como “os arcos comunicantes da Piazza Maggiore” ou “as quatro colunas”. É meio difícil explicar, mas vamos lá. Em frente à Basilica di San Petronio fica um edifício civil, construído por volta de 1.200, chamado Palazzo Del Podestà. O piso inferior desse palácio é aberto, com várias saídas e passagens, inclusive uma que vai da Piazza Maggiore para a Piazza Del Nettuno. No encontro dessas passagens existe um quadrado formado por quatro colunas com quinas. Se você falar, cochichar, com o rosto virado para uma coluna, de costas para o centro do quadrado, a pessoa posicionada na sua diagonal oposta, também de costas para o centro, é capaz de te ouvir graças ao “poder comunicante” dos arcos que ligam essas colunas. Pode parecer balela, mas é fato. Eu já testei. Só não sei explicar o mecanismo, mas que funciona, funciona. A lenda diz que nesse quadrado já foram feitos julgamentos. O réu ficava no centro enquanto os juízes, posicionados nas diagonais, podiam se comunicar antes de dar o veredicto.

(Foto tirada desse link)

- Fincadas sobre um antigo pórtico de madeira, localizado na Strada Maggiore, estão duas flechas. A lenda diz que um Conde que viajava muito estava desconfiado de que sua amada Condessa o traía e contratou arqueiros para matar o amante. Os arqueiros estavam a postos para cumprir a missão, quando, ao invés do amante, aparece na janela a Condessa nua. Assustados, os arqueiros, ao tentarem desviar o ataque, atingiram o pórtico logo acima da sacada onde a adultera se encontrava. Ainda hoje as flechas estão lá, como prova dessa traição histórica.

- No início da Via Indipendenza, entre quatro escrituras que embelezam um pórtico e falam de trigo e centeio, uma delas faz alusão à maconha. Os escritos aparecem também no chão. Pode ser que em algum momento também a canabis tenho sido ingrediente dos pães bolonheses. Ou não. Nunca se soube o autor de tal obra.

(Canabis Protecto. Foto tirada desse link)

- Existe em Bologna uma pequena Veneza escondida. Da Via Piella é possível ver um dos canais que passa por baixo da cidade. A vista lembra mesmo a paisagem veneziana, porém, devo admitir, com bem menos beleza e charme.

(Um deleite para os curiosos. Fotos tiradas desse link)

- O sexto segredo não tem tanta graça e esse não pude ver para crer. Dizem que em uma das torres tem um vaso quebrado incrustado na parede. Não conheci ninguém que o tenha encontrado. E mesmo subindo a torre atenta a cada cantinho, eu não vi nada, nadinha. Só se estiver na outra torre, a menorzinha. Alguns dizem que o tal vaso está ligado à maldição que gira em torno dos universitários que sobem a torre antes da conclusão do curso.

- E finalmente, o último segredo: a ausência do sétimo segredo. Na verdade, todos dizem que ele existe, só não conheci alguém que saiba exatamente o que é. Pode ser uma boa desculpa para visitar Bologna. Imagina desvendar esse mistério, o que até hoje ninguém conseguiu? Se descobrir, vai, por favor, me conta!

Veja o outro post de Júnea Casagrande sobre a charmosa (e por vezes misteriosa) Bologna nesse link!

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A gorda, culta e vermelha Bologna

Até hoje quando me perguntam por que decidi morar em Bologna, não sei muito bem responder o motivo da escolha. Acho que foi uma espécie de amor à primeira pesquisa. Quando resolvi fazer um intercâmbio, sabia que queria ir para Itália, pelo interesse na cultura, pelas paisagens que poderia conhecer e pela língua (para mim, a mais linda que existe). Pelo curso que fazia, tinha duas opções de faculdade: uma em Roma e outra em Bologna. Acho que o que me atraiu foi a ideia de morar em uma cidade pequena, onde se pode fazer tudo a pé ou de bicicleta, e que ao mesmo tempo me parecia ser bastante animada, sobretudo por ser universitária. Seria a oportunidade de viver um estilo de vida bem diferente do que o que tenho em Belo Horizonte. Ah... também achei que valorizava o intercâmbio falar que ia estudar na universidade mais antiga do ocidente ainda em funcionamento.

(A paisagem, claro, também valoriza o intercâmbio. Foto de Juli Borsa - Mochila da Juli)

Bologna é a capital da região da Emília-Romagna, localizada no norte da Itália e composta pela união de parte dessas duas regiões históricas. Embora raramente esteja incluída nos roteiros dos turistas, Bologna é uma cidade encantadora e cheia de história. Possuí hoje fortíssimos traços medievais, apesar de ter sido uma clássica cidade romana.

Foi construída no século II a.C, já pertenceu ao Império Bizantino, foi ocupada por Napoleão, anexada pelos Estados Papais e sofreu um bocado com a 2ª Grande Guerra. Por ter uma localização privilegiada - no caminho para diversas cidades - Bologna sempre esteve no meio das confusões (acho que sua efervescência política de histórica fama também contribuiu.) E essa posição estratégica foi pra mim uma mão na roda. Viajar de trem de Bologna para a maior parte da Itália é, teoricamente, bem fácil. Fácil porque um número bem grande de trens passa lá para se deslocar de um canto ao outro do país. A dificuldade está mesmo no funcionamento do sistema ferroviário italiano. Não basta comprar a passagem, tem que validá-la, senão, nada feito. E a coisa funciona meio como avião: quanto mais conexões, mais barato. O problema está justamente em fazer essas conexões. Elas podem dar um incrível nó na sua cabeça.

(Os fios por onde passam iluminação também passam ônibus elétricos. E nas ruas há ainda carros, pessoas, bicicletas... Foto tirada desse link)

A gorda, a culta, a vermelha

Bologna é conhecida como “La grassa, La dotta, La rossa”. Em bom português: gorda, culta e vermelha. O “gorda” acho que é a parte mais auto-explicativa, né? A comida italiana, como esperado, é um caso a parte (que eu conto em outro post) e posso falar que em Bologna ela tem seus dias de glória. O “culta” está ligado à Università degli Studi di Bologna, fundada em 1088, tendo grande importância para o desenvolvimento intelectual da Europa.

(Os muros cheios de papéis oferecendo casas, cursos e outros são a cara da Via Zamboni, rua com os principais prédios da Universidade. O anúncio da casa que morei exaltava fumantes e pessoas solares. Foto tirada desse link)

Já o adjetivo “vermelha” tem duas explicações bem plausíveis. Uns o atribuem às tendências políticas de esquerda, muito presentes na cidade, o que por sua vez teria forte ligação com a presença da universidade. Outros dizem que a fama é devida à arquitetura de tijolinhos da cidade e a extensa utilização de terracotta (ou argila secada ao forno) nos palácios, que dão às suas construções uma cor ocre/avermelhada.

(Alguma dúvida sobre a vermelhidão da cidade? Foto de Juli Borsa - Mochila da Juli)

Além da cor da cidade, uma coisa que eu amo na arquitetura de Bologna são os seus famosos pórticos, que são como marquises gigantes, com tetos super trabalhados e detalhados, que cobrem toda a largura dos passeios. Assim, faça chuva, neve ou sol, dá pra bater perna por todo o centro de Bologna. É uma maravilha! São cerca 38 quilômetros de pórticos no centro histórico da cidade. O mais longo deles liga uma das doze portas que ficaram como resquício da antiga cidade murada medieval a uma igreja belíssima, situada no alto de uma colina, a Chiesa di San Lucca. A caminhada até a Igreja é um programa super bacana, mas devo dizer que cansa, e bastante. Uma boa pedida é subir de ônibus e só descer a pé, já que pra baixo todo santo ajuda. Mesmo assim, é bom estar preparado. Em algum momento, o caminho pode parecer não ter fim.

Dizem que os primeiros pórticos foram feitos para aumentar a área disponível à construção nos edifícios. A ideia era que eles funcionassem como um segundo piso, uma segunda base, para que os andares superiores dos prédios tivessem mais área útil. Por abrigar uma das faculdades mais antigas da Europa, um centro intelectual da idade média, Bologna atraía muitas pessoas e todas elas tinham interesse de morar no centro da cidade, mais próximas às instalações da universidade. Por isso a preocupação com a otimização de espaços centrais para habitação.


(Os pórticos servem a um bom passeio ou mesmo para se esconder do sol durante os dias mais quentes do ano . Fotos tiradas desse e desse link)

Arquitetura a dar e vender

Bologna tem váááárias igrejas, como quase toda a Itália. A mais famosa delas é a Basílica di San Petrônio, que foi bispo da cidade no século V. A igreja, uma das maiores do mundo católico, se localiza na Piazza Maggiore, um dos principais pontos turísticos da cidade. Seu projeto arquitetônico é uma coisa bem mirabolante e muito megalomaníaca. A idéia é que ela tivesse o formato de uma cruz, com um largo e extenso corredor central, cortado pelo que seria o “braço” da cruz.

(A enorme Piazza Maggiore, ponto de encontro de pedestres e motorizados. Foto tirada desse link)

Porém, dizem que por medo de que a Basílica de São Petrônio se tornasse maior e mais bela que a Basilica di San Pietro, no Vaticano, o Papa parou de enviar recursos para a sua construção. Assim, a cruz ficou sem braço (dá pra ver o inicinho deles construídos nos dois lados da igreja) e a construção ganhou um caráter bem peculiar: da metade pra baixo o acabamento da igreja é pomposo, trabalhado, bonito, feito de mármore; já da metade pra cima, devido ao corte da verba, a basílica não tem acabamento, ficou tudo só nos tijolinhos.

A Basilica di San Petronio não é das igrejas mais bonitas, mas é super legal de visitar. Dentro dela tem ainda uma meridiana solar, que seria uma espécie de relógio de sol. O funcionamento dele é mais ou menos o seguinte: num determinado ponto do teto da igreja tem um furinho por onde entra o sol e no chão marcações super antigas em uma comprida linha apontam o meio-dia ao longo dos diferentes dias do ano.

(Ares medievais. Foto tirada desse link)

Também na Piazza Maggiore ficam o Palazzo dei Notai, sede dos advogados no século 14, o Palazzo dei Banchi, que abriga as antigas lojas dos banqueiros, o Palazzo Comunale, que contém uma coleção de arte da cidade, o Museo Civico Archeologico e o complexo Archiginnasio, a parte mais antiga da Universidade, hoje uma biblioteca enorme. Nessas redondezas vemos ainda a Pinacoteca Nacional, com um monte de obras renascentistas e testemunhas de escolas medievais e bolonhesas dos séculos XIV ao XVII.

Coladinha na Piazza Maggiore fica a Piazza Del Nettuno, cujo nome vem da Fontana Del Nettuno, construída por volta de 1500. Ela foi feita pelo escultor Giambologna, que havia perdido anteriormente a competição para a construção da Fontana Del Nettuno, na famosa Piazza Della Signoria, em Florença. Dizem que sua redenção após a derrota em Florença começou com o Nettuno bolonhês. Em torno dessa estátua gira ainda um dos sete segredos de Bologna, completamente ligado a eroticidade que ela carrega. Mas isso é papo para mais tarde...

(À época, por julgar que o monumento tinha um forte caráter erótico, a igreja quis colocar calças de bronze no Nettuno nu e cobrir as ninfas que jorram água pelos seios. Foto tirada desse link)


Outra basílica bacana de visitar é a Santo Estêvão, também conhecida como Sette Chiese (sete igrejas). A basílica é na verdade um complexo de prédios religiosos, dedicados ao culto, cada um com uma cara. Segundo a tradição, quem construiu a Basílica di San Stefano foi São Petrônio, aquele mesmo que deu nome a igreja da Piazza Maggiore. A pracinha da San Stefano, pra mim, é uma das mais fofas da cidade, com um formato meio triangular e o chão feito de pedrinhas redondas. É uma delicia ficar lá sem fazer nada, vendo o movimento. Além disso, uma vez por mês acontece ali uma feira de antiguidades, com muita coisa bacana a preços variados. E como em toda feira de antiguidade, é só ter paciência e persistência para garimpar.

Outra igreja legal é a de São Domenico, feita para abrigar as relíquias desse santo no que chamam de Arca di San Domenico, esculpida por ninguém menos, ninguém mais que Pisano e Michelangelo.

(Arte italiana. Foto tirada desse link)

Uma das coisas mais legais pra mim, envolvendo todas as praças e igrejas da cidade, era ver como elas faziam parte do cotidiano das pessoas. As praças em frente a esses monumentos ficavam, sobretudo nas épocas de calor, ocupadas por estudantes. Ali eles tocavam instrumentos, bebiam e conversavam fiado. Já vi até os jardins em torno das igrejas serem utilizados para aulas de violão. A utilização diversa desses espaços é o que mais me encantava, porque ia além da grandiosidade arquitetônica e esplêndida riqueza que as igrejas impunham.

Mas apesar da grande quantidade de igrejas em Bologna, o monumento símbolo da cidade não é uma delas. Creio que o seu mais famoso e visitado ponto turístico sejam as Duas Torres. Umas das poucas e as mais altas que restaram. Em meados do século XIII, Bologna possuía mais de 180 torres construídas pelas principais famílias da cidade. Além de demonstrarem poder, as torres já foram utilizadas como prisão, fortaleza e foram muito importantes na defesa da cidade durante a Segunda Guerra Mundial. Hoje ainda trombamos com algumas torres ao passear pela cidade e as mais conhecidas se exibem garbosas bem no miolinho de Bologna: a Torre Asinelli e a Torre Garisenda.

(Foto tirada desse link)

A Torre Asinelli, a mais alta delas, possui 97 metros de altura e quase 500 degraus até o topo. É uma das maiores dentre as famosas torres que enfeitam diversas cidades italianas. A subida, apesar de bastante cansativa, por escadas apertadinhas, vale muito a pena. A vista lá do alto é linda, dá pra ver algumas das principais avenidas da cidade e ter uma noção completa da cor que a constrói. Além disso, ela é um ótimo ponto de referência: caso se perca nas vielinhas da cidade, olhe para o alto e siga em direção a torre, pois pertinho das duas torres se localiza a Via Zamboni, famosa por concentrar a maior parte dos prédios utilizados pela Universidade. Pelo menos em um lugar conhecido e movimentado você vai chegar.

Com 48 metros de altura, a torre menor é bastante pendente, tortinha, como a de Pisa. Hoje em dia, gira uma lenda em torno da Torre Asinelli. Dizem que se um estudante da Universidade de Bologna subir a torre antes de se graduar, não consegue se formar mais. Nos seis meses que estive lá não conheci ninguém que tenha se arriscado. Na dúvida, é melhor não mexer com isso. Para estudantes intercambistas, eu sou prova de que a lenda não se aplica.

(Imagem do alto da Torre Asinelli. Me arrisquei e me formei mesmo assim!)

Além desses pontos turísticos específicos, bater perna por Bologna, pra mim, já é um grande passeio. As ruazinhas têm seus encantos, os pórticos, como já disse, são admiráveis, e por toda parte a gente se depara com palácios medievais imponentes, belas construções, lojinhas e restaurantes charmosos e pequenas pracinhas no meio do caminho. Tinham dias em que eu saía de casa simplesmente para descobrir e redescobrir esses caminhos, essas ruelas, essa bela cidade e de quebra ainda escutar sem parar, nos mais diversos timbres e intenções, o italiano, essa tal língua-música.

Júnea Casagrande se graduou em Publicidade mas dá as caras no jornalismo vez ou outra.  Não é a toa que no facebook ela se declara com a frase "é prosa, querendo ser poesia". Júnea passou seis meses em Bologna comendo pizza, falando italiano e criando apelidos para diferencias suas colegas de apartamento, que tinham o mesmo nome. Aqui ela conta um pouquinho dessa experiência.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Arte por todos os lados

Aproveitar o dia ou curtir a noite? A dúvida que sempre tenho quando viajo para certos lugares se tornou uma constante em Barcelona. Afinal, a capital da catalunha um dos maiores centros de arte de toda a Europa e algumas das melhores baladas do velho continente.

(O destino do dia... nada mal! Foto tirada desse link)

Como não soubemos priorizar, optamos pelos dois. E optamos também por uma viagem angustiante, na qual nunca estávamos satisfeitos. Começou já depois do revéillon. Aquela cidade imensa com mil coisas interessantes a se ver... e um grupo de cinco intrépidos turistas cansados depois de ter chegado às 6h30 da manhã em casa. Acontece que acordamos na hora do almoço e saímos rapidinho para aproveitar o dia. Um dia nublado, diga-se de passagem.

O Andrew ia com a gente, mas pegou uma gripe tão forte que não conseguiu sair da cama. Então tomamos as rédeas do passeio e seguimos suas indicações. O primeiro lugar imprescindível era o Parc Güell, um parque no alto de uma das colinas de Barcelona projetado pelo famoso arquiteto Antoni Gaudí, representante máximo do modernismo catalão e autor de algumas das estruturas mais interessantes do país. A começar pelo próprio parque.

(Vista da cidade da praça do Parque Guell)

Entramos por um portão que não era o principal e o local parecia até então um parque comum que guardava, por que não, algumas obras inusitadas. Eu subia depressa as escadas para ver o que mais tinha por ali e então cheguei à praça oval, um espaço 3 mil m² suspenso por diversos pilares e rodeado por um muro tortuoso cheio de mosaicos em cerâmica, bonitos e coloridos. Um verdadeiro exemplar da arte espanhola. Ou seria da identidade daquele país?

Não é difícil entender porque o local foi nomeado Patrimônio da Humanidade pela Unesco desde 1984. Ele é um espaço único no mundo. Tão diferente de tudo que eu me perguntava a todo tempo em que mundo estava Gaudí quando o projetou. Quando as pessoas fazem algo, querendo ou não, têm no fundo do cérebro um referencial... as refências dele naquele pedaço de concreto não pareciam ter vindo do planeta terra. Talvez os jardins suspensos da Babilônia inspiraram a praça, talvez o fundo do mar foi a chave para os mosaicos de pedra, talvez João e Maria tenha sido a base para a construção dos pavilhões da entrada. Fato é que aquilo juntava um monte de propostas e se tornava, ao final, algo único.
















(Os pavilhões do Parque Guell guardam restaurantes e lojinhas)

O local foi financiado pelo rico empresário Eusebi Güell, mecenas de Gaudí e apaixonado por arte. Tão apaixonado que nunca interferiu em nenhuma decisão do arquiteto: ao pedir alguma obra lhe dava total autonomia para que ele fizesse o que achasse melhor. A montanha pelada, onde está o parque, era propriedade do prefeito de Barcelona e foi comprada por Güell em 1899. Surgiu do empresário a ideia de transformar o local em um espaço urbanizado e o plano inicial era que ele incluísse cerca de 60 moradias e imensos jardins. O local seria um objeto de desejo não só pela sua arquitetura mas também pela sua localização, com vistas para toda a cidade.

(Mosaicos de cerâmica e gárgulas na praça suspensa)

Mas ainda no início da década de 1900 eles perceberam que a construção não seria o sucesso esperado pois os barceloneses julgavam o espaço longe do centro da cidade. As obras continuaram mesmo assim. Com a morte de Güell em 1918 as obras pararam e seus herdeiros resolveram vender o local para o município de Barcelona, que faz do parque um espaço público em 1922.

(Um reggae a la música latina manda ver no centro da praça do Parque Güell e os turistas, afoitos, encontram mais um objeto para suas fotos)

Um monte de vivas ao governo catalão que deu ao mundo uma nova obra de arte. A turista encontra uma surpresa a cada passo e uma vontade incalculável de compreender aquele lugar incompreensível. O Parque Güell é arte pela arte. E com trilha sonora. Mais especificamente um reggae harmonioso que começou no centro da praça. A banda se chamava Microguagua e vale a propaganda. Quando a primeira música acabou nos juntamos aos outros turistas para escutar e dançar com a música daqueles seis homens de dreadlooks e moletons surrados. Passamos cerca de 20 minutos ali, rindo bastante e cantando junto.

O fim do passeio terminou em fotos com a colorida salamandra do Parque Güell, que fica na escadaria da entrada principal. Hoje, a escultura é um dos símbolos máximos de Barcelona, mas ninguém sabe ao certo o que ela representa. Alguns dizem que é uma alusão à salamandra alquímica que simboliza fogo ou mesmo ao dragão mitológico Píton. Eu acho que, partindo da cabeça do Gaudí, aquele anfíbio não passe de... uma salamadra. Foi a beleza que a transformou em arte.

(Foto tirada desse link)

Vi o céu ficando escuro e me lembrei que os passeios naquele dia estavam terminando. Então voltamos para o centro. Entre praças e construções históricos, um prédio chamou atenção. Havia uma figura nele que parecia ser desenhada por crianças. Mas como nada em Barcelona é de graça - tudo é arte - pensamos que devia ser de algum pintor famoso. Susto eu tomei quando escutei que aquela imagem era uma réplica de um desenho de Picasso. "Picasso? Mas aquilo ali está mais para Miró". Fato.

(Sátira ou arte)

Dizem que os pintores eram rivais e que certa vez, em um bar, Picasso estava bebendo absinto quando escutou dois homens próximos a ele conversando sobre a genialidade de Miró e ficou furioso. Sem conseguir se conter, ele se levantou e disse que o rival pintava como uma criança e que qualquer um podia fazer aquilo. Pegou um lápis, fez um desenho na mesa do bar e saiu fora. As pessoas ficaram olhando para ele sem entender e então se viraram para o desenho que estava na mesa e... "é, até que parece Miró". Hoje, aquela imagem embeleza um pouco um dos prédios mais feios da cidade.

Da arte moderna passamos para o época medieval. Ali no centro, a alguns metros da famosa avenida La Rambla, está o bairro gótico. O local, que é a parte mais antiga da cidade, esteve intacto até o século XIX, quando algumas reformas urbanísticas fizeram cemitérios se transformarem em praças públicas e muralhas cederem espaço à construção de novos prédios. Mas boa parte dos elementos antigos permanecem ali. Principalmente os ares medonhos e escuros daquela época.

(Uma das ruas estreitas do bairro gótico com um antigo passadiço. Foto tirada desse link)

Passeamos pelas ruas estreitas e pouco iluminadas daquela região. As construções medievais eram imponentes e enormes. Ao seguir com os olhos até onde ia aqueles muros dei de cara com um céu amarronzado que imitava a coloração das paredes e aumentava a sensação de grandiosidade. Um dos únicos monumentos abertos aquela hora do noite era a Catedral de Santa Eulália de Barcelona, uma enorme igreja gótica construída entre os séculos XIII e XV por cima da antiga igreja de estilo românico que havia ali no período visigodo. O espaço é uma das mais impressionantes e ricas igrejas da cidade, mas o preço e a fila nos fizeram desistir de entrar no seu interior. Vistamos o claustro e seus jardins, que em dias de festa natalina guardava um presépio em tamanho real.

(Jardim do Claustro. Plantas, lagos e patos debaixo do céu marrom)

Voltamos para a casa mas estávamos sem sono. E em Barcelona. Era mais um dia de festa. Troucamos de roupa e procuramos um bar para comer, beber e jogar conversa fora. Minha cabeça encostou no travesseiro às 3h da manhã. Sentia que o dia seguinte seria parecido.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Cidade de nuances

Barcelona faz parte da lista de cidades que não conheci. O mais estranho é que passei um tempo considerável ali. Fiquei três dias na cidade, visitei museus, caminhei por diversas praças, fui a bares e boates, não parei de andar um único segundo. Mas ainda assim voltei com a sensação de que não foi o suficiente.

(Do clássico ao contemporâneo, Barcelona é cercada de arte por todos os os lados. Foto tirada desse link)

Mesmo que eu não saiba porque, tenho algumas suspeitas. O primeiro ponto é a sua geografia. Em Madrid ou em Sevilha, os princiais pontos turísticos estão no centro. Existem coisas que se localizam nos extremos da cidade, mas grande parte do que as pessoas acreditam ser essencial pode ser visto de uma só vez. Em Barcelona, ao contrário, o centro tem alguns locais interessantes, como a Rambla e o Bairro Gótico, mas se você vir um mapa vai perceber que os pontos turísticos importantes estão ao redor do centro. Para conhecer todos é preciso ou muito tempo ou muito dinheiro.

Outra coisa que faz com que a compreensão sobre a cidade não seja completa é também o que a faz particular: sua arte. Além dos diversos museus e exposições, a cidade é por si só uma galeria a céu aberto. Por todos os pontos há construções do medieval ao contemporâneo, muitas delas assinadas por artistas como Gaudí, Picasso, Miró e tantos outros. Mas a mistura de todos eles pode causar confusões aos turistas menos atentos, como não compreender a história local ou mesmo e não saber se localizar em um mapa.

(A Sagrada Família, cartão postal da cidade, era o nosso ponto de referência para voltar pra casa. Foto tirada desse link)

Nos três dias que fiquei lá caí em ambas as pegadinhas. Por não entender todas as nuances da cidade... nos perdemos. Não no sentido geográfico, mas no sentido cultural de entendimento de um espaço. Ao final, fiquei com a impressão de que vi pouco e de que não captei o espírito dos seus habitantes. Mas não posso dizer que não tentei... e muito.

Noche vieja

O primeiro dia em Barcelona tinha um objetivo principal: festa. A viagem foi organizada para que chegássemos na véspera do ano novo e pudéssemos curtir o revéillon em uma das cidades com as melhores festas da Europa. Assim, chegamos com vontade de beber, conversar e dançar até a próxima primavera.

(Bebidas e conversas a meia luz em um dos melhores bares da cidade, o La Fianna. Foto tirada desse link)

O Andrew, amigo da Agathe que ia nos dar abrigo aqueles dias, foi nos pegar no aeroporto e nos levar até seu apartamento. Assim que cheguei em casa e depositei minhas malas no chão quis sair para passear pela cidade. Mas estava todo mundo cansado e afim de dormir. A Tissi foi a única que se dispôs a sair comigo, mas com outras intenções: encontrar lingerie vermelha para passar o ano novo, assim como pedem as tradições espanholas.

Saímos então pelas ruazinhas do centro da cidade. Passamos por uma, duas, três... e comecei a me perder. Pareciam todas iguais, igualmente retas, igualmente pequenas e igualmente distantes uma da outra. Além disso, as esquinas de todas as ruas eram chapadas, fazendo com que o espaço entre um quarteirão e outro se alargasse, proporcionando áreas de respiro no meio do caos urbano. Estava tudo perfeito demais para não ser de propósito.

(Imagem do Google Maps do centro da cidade de Barcelona e sua regularidade geométrica)

Barcelona começou pequena. No início ela era só a ciutat vella, o bairro mais antigo da capital catalã à borda do mediterrâneo. O local foi estrategicamente escolhido pelos romanos, pois estava em uma pequena colina entre dois córregos e tinha acesso facilitado ao mar. Ainda no século IV eles construíram uma enorme muralha ao redor de toda a cidade velha para protegé-la de possíveis ataques. Mais tarde, a muralha serviu à proteção da cidade frente os povoados que se formavam ali perto.

No século XIX, porém, as muralhas foram destruídas e em 1859 o governo decidiu anexar os seis povoados, fazendo com que eles se tornassem bairros de Barcelona. Sentiu-se então a necessidade de se pensar em um novo traçado que fosse capaz de atender a unificação dos novos territórios e também o desenvolvimento industrial e econômico da cidade. A proposta eleita veio do urbanista Idelfonso Cerdà. O Plano Cerdà, como ficou conhecido, previa a criação de um novo bairro no espaço vazio deixado entre a cidade antiga e os povoados vizinhos. A área seria cortada por duas diagonais em forma de X e as ruas seriam quadriculadas, um desenho totalmente novo no contexto europeu. O objeto era criar um espaço visualmente limpo e higienicamente correto, uma vez que até o direcionamento dos quarteirões aproveitam a direção dos ventos para a limpeza da atmosfera local.

(Plano de Cerdà. Foto tirada desse link)

Eles só esqueceram que quando as coisas são homogêneas demais fica fácil se perder. Foi o que quase aconteceu com a gente. Fomos nos afastando tanto a procura de boutiques e lojinhas que na hora de voltar tivemos de pedir informação (em um espanhol deveras enferrujado).

Voltamos ao entardecer mas logo saímos de novo para comprar comidas e bebidas para a virada do ano. Já em casa, tudo parecia harmonicamente combinado. Esquecemos um pouco que estávamos em Barcelona e que tínhamos muito a conhecer para aproveitar aquele clima de organização festiva. As meninas cozinhavam com a TV ligada enquanto todo mundo conversava animadamente.

(Alguns supermercados chegam a vender as doze uvas embaladinhas, prontas para serem usadas. Foto tirada desse link)

O Andrew me explicava as tradições do ano novo na Espanha. A principal prevê a ingestão de 12 bagos de uva nos últimos doze segudos do ano. Em Madrid, a tradição reúne centenas de pessoas na Puerta del Sol, que comem uma uva a cada badalada. Dizem que quem não o fizer, ou mesmo quem começar a comer as uvas na hora errada, terá azar no ano seguinte. Mas Andrew disse nao ver muito sentido na tradição e que algumas pessoas acabavam morrendo asfixiadas ao tentar realizar essa façanha. Ficamos então com o bom e velho brinde de champagne à meia noite!

A passagem de ano sempre me fez sentir como se o ano realmente tivesse mudado pois no Brasil parece mesmo uma comemoração. Da favela à zona sul, as pessoas soltam fogos de artifício e o céu se enche de cores por mais ou menos 15 minutos. Todo mundo fica calado, olhando para cima, admirando as piruetas dos foguetes pirotécnicos e o barulho das cascatas de fogos. E depois do silêncio, música alta e clima de festa. Ali eu não escutei nada... os únicos ruídos foram os da nossas taças se encontrando e da TV ligada. Depois, nos sentamos de novo e continuamos conversando e beliscando amendoins e semestes de girassol. Não pareceu em nada com o ano novo que estava esperando... e as meninas sentiram o mesmo.

(A noche vieja em Madrid é a que mais se aproxima do clima brasileiro que, querendo ou não, a gente estava esperando. Foto tirada desse link)

Eu queria sair, ver a cidade, o movimento das ruas, os bares cheios, as filas na porta das boates... mas não era a hora. Como tinha aprendido há dias atrás, na Espanha tudo começa tarde, e Barcelona não fugia a essa regras. Principalmente no ano novo. Até 1h ou 2h da manhã, as pessoas ficavam com a família ou na casa de amigos. Depois era hora de ir para um bar e só depois as pessoas saíam para dançar.

Assim, fomos à casa de um amigo do Andrew por volta de 1h3o da manhã e por volta das 3h30 paramos em um bar. Dali queríamos ir em uma boa boate, daquelas enormes e famosas, como a Soho Club ou a Factory. Mas Andrew e seus amigos falaram que esses lugares cobravam fortunas e não ofereciam uma diversão tão diferente assim quanto outros diversos lugares mais baratos e mais originais... então acabamos em uma boate pequena, simpática e divertida em uma das ruas transversais à Rambla.

(Um dos vários salões da RazzMatazz, uma das maiores e mais badaladas discos da cidade. Foto tirada desse link)

Pegamos um metrô às 6h da manhã e voltamos para casa, cansados. No caminho, as ruas continuavam cheias. Perguntei ao Andrew - que ainda tinha algum nível de sobriedade no rosto, - se era sempre assim. "Barcelona é uma metrópole. Aqui tem de tudo para todo tipo de pessoa. Ela não para e está sempre cheia de gente". Fiquei admirada. Afinal, estava há quatro meses em uma cidade que morria depois das duas da manhã. Mesmo em Paris ou Belo Horizonte, para pegar exemplos díspares, as ruas não eram tomadas por pessoas na madrugada.

(La Rambla durante a noite. Há vida em Barcelona mesmo altas horas da madrugada. Foto tirada desse link)

Com o tempo entendi o ritmo da cidade, embora ainda hoje não entenda muito bem o que ela pretende. A cidade que não para é chamado por muitos como "metrópole do mediterrâneo" e deve ser por isso mesmo que cada pessoa sai dali com um sentimento diferente. Uma metrópole sempre tem combustível para alimentar todo tipo de percepção.